terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Humanização na Saúde

                                Humanização na Saúde
O conceito de humanização tem ocupado um lugar de destaque nas atuais propostas de reconstrução das práticas de saúde no Brasil, no sentido de sua maior integralidade, efetividade e acesso. Embora muito já tenha sido feito em termos da discussão e reestruturação das tecnologias e do planejamento dos serviços, há, comparativamente, ainda escassos trabalhos sobre as bases teóricas e filosóficas para as mudanças propostas. Este ensaio reflexivo busca explorar o potencial da hermenêutica para responder a esta tarefa essencial, se buscamos uma revisão verdadeiramente radical do significado e organização das práticas de saúde. Nesse sentido, a hermenêutica contemporânea é aqui revisitada em relação a alguns dos desafios éticos e epistemológicos relacionados aos ideais de humanização das práticas de saúde.o momento em que se assume a humanização como aspecto fundamental nas políticas de saúde urge que o conceito de humanização seja reavaliado e criticado para que possa efetuar-se como mudança nos modelos de atenção e de gestão. Tal urgência se configura pela banalização com que o tema vem sendo tratado, assim como pela fragmentação das práticas ligadas a programas de humanização. Trata-se de um mesmo problema em uma dupla inscrição teórico-prática, daí a necessidade de redefinição do conceito de humanização, bem como dos modos de construção de uma política pública e transversal de humanização da/na saúde.
A professora Regina Benevides, o professor Eduardo Passos temo uma história decolaboração acadêmica e política bastante produtiva. Assim, debater o artigo Humanização na saúde: um novo modismo? é somente mais uma etapa de um longo diálogo que vimos entabulando nos últimos dez anos. Parto da constatação por eles apresentada de que os princípios gerais ou as diretrizes genéricas de uma política, inclusive no caso do SUS, devem ser examinados em sua concretude, ou seja, articulados com a descrição dos modos como poderiam ser levados à prática. Assim, partindo do princípio da Integralidade ou da Humanização podem ser armadas políticas amplas ou restritivas e projetos reformistas ou medíocres. A discussão de princípios abstratos termina, freqüentemente, em declarações fundamentalistas e em embates puramente ideológicos. Um valor apresentado em confronto a outros. Por outro lado, princípios e diretrizes são importantes para compor imaginários utópicos e indicar novos rumos e objetivos para as políticas.  Neste sentido,o debate sobre Humanização deve contemplar estas duas dimensões: sua capacidade de produzir novas utopias, mas também o de interferir na prática realmente existente nos sistemas de saúde.
Os autores apresentam a humanização como um “conceito-sintoma” que, em determinadas circunstâncias, poderia se transformar em um “conceito-experiência”.Sintoma de quê, caberia perguntar? A moda da Humanização seria apenas um movimento demagógico tendente a simplificar conflitos e problemas estruturais do SUS?Ou refletiria uma tendência real do sistema de saúde para desvalorizar o ser humano.Provavelmente as duas coisas vêm acontecendo. Sem dúvida, há um processo deburocratização e, em muitos casos, até mesmo de embrutecimento das relações interpessoais no SUS, quer sejam relações entre profissionais, quer seja destes com os usuários. Há evidências dessa degradação tanto em episódios como o da crise da atenção hospitalar no Rio de Janeiro ou em pesquisas que indicam modos de funcionamento dos serviços com baixo grau de envolvimento das equipes em sua tarefa primária que é produzir saúde. A essa constatação muitos têm aposto o diagnóstico genérico de serviços desumanizados. Daí, para explicações simplistas há um caminho aberto: a receita seria a catequese ou a sensibilização dos trabalhadores de saúde para que adotassem posturas e comportamentos “cuidadores” – mais um neologismo inventado como saída mágica para um contexto complexo.Cada um destes conceitos-diretrizes tem uma potencialidade implícita em seu modo de produção. Integralidade nos remete para o mundo dos sistemas de saúde, integração de saberes e de técnicas. Ainda que possa abrigar qualquer outra discussão, já que integral significa  “total, inteiro e global”; ou seja, o mundo, o universo e suas cercanias. Humanização carrega esta mesma ambigüidade. Deverão, portanto, ser discutidos, acoplados aos projetos concretos, elaborados em seu santo nome. De qualquer modo,sinto-me atraído pela utilização do conceito-síntese Humanização. Isto porque ele fala diretamente sobre os seres humanos e parece-me que um dos grandes problemas da lógica dominante contemporânea é o esquecimento das pessoas. Políticas econômicas têm sido avaliadas de acordo com sua capacidade de produzir crescimento ou estabilidade monetária e não necessariamente de melhorar as condições de vida das pessoas. A ordenação do espaço urbano há muito deixou de lado a preocupação com o bem-estar das pessoas. Em saúde é comum a redução de pessoas a objetos a serem manipulados pela clínica ou pela saúde pública. O humano diz respeito ao Sujeito e à centralidade da vida humana.A Humanização tem relação estreita com dois outros conceitos muito fortes em meu percurso como pesquisador e sanitarista: o de defesa da vida e o de Paidéia. A defesa da vida é um ótimo critério para orientar a avaliação de políticas públicas. É também um objetivo permanente, uma meta central a ser buscada por qualquer política ou projeto de saúde. O conceito Paidéia é ainda mais radical, porque nos empurra a pensar modos e maneiras para o desenvolvimento integral dos seres humanos, sejam eles doentes, cidadãos ou trabalhadores de saúde. Sempre que falo em Humanização estou colando nesta palavra-valor o tema de defesa da vida e o de Paidéia.Rosana Onocko no artigo  Humano demasiado humano: uma abordagem do mal-estar
na instituição hospitalar  criticou o viés antropomórfico presente quando denominamos a injustiça, a exploração, o mal e a perversidade como sendo atributos desumanos. A desumanização existente nos serviços de saúde é um produto humano, ainda quando resulte de uma combinação de problemas estruturais com posturas alienadas e burocratizadas dos operadores (Onocko Campos, 2004). Afinal as estruturas sociais são também produto humano e, em tese, poderiam ser refeitas mediante trabalho e esforço humano. Há de fato um paradoxo nessa caracterização. De qualquer modo, tende-se a qualificar de desumanas relações sociais em que há um grande desequilíbrio de poder e o lado poderoso se aproveita desta vantagem para desconsiderar interesses e desejos do outro, reduzindo-o a situação de objeto que poderia ser manipulado em função de interesses e desejos do dominante. Partindo deste pressuposto, não há como haver projeto de Humanização sem que se leve em conta o tema da democratização das relações interpessoais e, em decorrência, da democracia em instituições. No SUS a Humanização depende, portanto, do aperfeiçoamento do sistema de gestão compartilhada, de sua extensão para cada distrito, serviço e para as relações cotidianas.Envolve também outras estratégias dirigidas a aumentar o poder do doente ou da população em geral perante o poder e a autoridade do saber e das práticas sanitárias. Valorizar a presença de acompanhantes nos processos de tratamento, bem como modificar as regras de funcionamento de hospitais e outros serviços também em função de direitos dos usuários. Mecanismos preventivos e que dificultem o abuso de poder são essenciais à humanização. A predominância de saídas jurídicas,  pos factum, é um sintoma da perversidade de instituições e das normas vigentes.A Humanização, considerando-a nesta perspectiva, é uma mudança das estruturas,da forma de trabalhar e também das pessoas. A humanização da clínica e da saúde pública depende de uma reforma da tradição médica e epidemiológica. Uma reforma que consiga combinar a objetivação científica do processo saúde/doença/intervenção com novos modos de operar decorrentes da incorporação do sujeito e de sua história desde o momento do diagnóstico até o da intervenção.
A humanização depende ainda de mudanças das pessoas, da ênfase em valores ligados à defesa da vida, na possibilidade de ampliação do grau de desalienação e de transformar o trabalho em processo criativo e prazeroso. A reforma da atenção no sentido de facilitar a construção de vínculos entre equipes e usuários, bem como no de explicitar com clareza a responsabilidade sanitária são instrumentos poderosos para mudança. Na realidade, a construção de organizações que estimulem os operadores a considerar que lidam com outras pessoas durante todo o tempo, e que estas pessoas, como eles próprios, têm interesses e desejos com os quais se deve compor, é um caminho forte para se construir um novo modo de convivência.

A Humanização poderá abarcar um projeto com este teor. Ou não. De qualquer modo,é um conceito que tem um potencial para se opor à tendência cada vez mais competitiva e violenta da organização social contemporânea. A Humanização tende a lembrar que necessitamos de solidariedade e de apoio social. É uma lembrança permanente sobre a vulnerabilidade nossa e dos outros. Um alerta contra a violência.Como diria o Luiz Odorico, a Humanização produz uma ‘tensão paradigmática’(Andrade, 2004) entre a frieza da racionalidade economicista ou administrativa ou mesmo do pragmatismo político com a preocupação em organizar-se um mundo para a humanidade. Quando se fala muito em humanização fica mais difícil esquecer-se da lógica em defesa da vida. Ainda que seja sempre possível. A humanização como conceito-experiência. Este é o desafio, este é o caminho para construção de sentido e de significado para políticas de humanização, assim nos ensinaram Regina e Eduardo.

Referência:
Tese (Doutorado) - Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas,

Universidade de Campinas, Campinas.

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